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in: catálogo “ZIEL1=KUNST=ZIEL1 - Workshops 2001/2002/2003", edição Lex Liszt 12, Oberwart, Austria,2004
in: Revista “AÇORES” – Jornal “AÇORIANO ORIENTAL”, outubro de 2004

UMA OMISSÃO COM 10 ANOS DE IDADE

No dia 15 de Fevereiro de 1995, publiquei no Pulsar, Suplemento Cultural do Jornal Açoriano Oriental, uma recensão crítica sobre as obras dos pintores Tomaz Vieira, Filipe Franco e Nina Medeiros, presentes na exposição Vimanas/94, organizada por Margarida Teves de Oliveira, realizada no Hotel Açores Atlântico em Dezembro do ano anterior. Caracterizei sumariamente essas obras face à produção artística global, indiciando que a prática da pintura se associava à opção pelo valor estético da permanência por oposição ao valor estético do efémero.
Ao ser-me formulado um convite para organizar uma exposição de artistas açorianos que inaugurasse o espaço deexposições temporárias do renovado Teatro Micaelense, não hesitei em conceber uma exposição que apresentasse exclusivamente pintura. A clareza com que este projecto tomou forma habilitou-me a poder traçar uma linha de referência, nem sempre recta, que retorna às Vimanas/94. De facto, quando há 10 anos decidi escrever sobre pintura e sobre pintores não podia prever o que aconteceria na década seguinte a crescente fixação de artistas plásticos nos Açores a fazer pintura, na sua esmagadora maioria. Esta não poderia deixar de ser, por conseguinte, uma exposição de pintura. Os três artistas sobre cujo trabalho escrevi na recensão de Janeiro de 95 permaneceram também na pintura,como o provam as suas obras aqui apresentadas. Contudo, na altura, deixei escapar uma característica significativa da produção dos artistas açorianos, que, exactamente por sê-lo, se transformou numa omissão de 10 anos: o facto de a sua obra evocar, recorrentemente, o tema da paisagem.

 

UM CONTEXTO ALTERADO

Se no Inverno de 94 uma exposição colectiva de Arte Contemporânea realizada nos Açores podia representar apenasquatro pintores da Região, no Outono de 2004 tal não é possível, porque a situ ção se alterou definitivamente. Desde aquela altura tem vindo a crescer o número de artistas que aqui fixam residência mantendo uma produção regular. Alguns deles vieram e regressaram; outros por ca ficaram; muito trabalho foi feito; muitas exposições individuais se inauguraram e se viram; algumas exposições colectivas foram dando a conhecer o que estava a acontecer de novo nos Açores - destacam-se a Periferia ao Centro, em 1997, e as Criações Periféricas, em 1998, ambas comissariadas por Filipe Franco; escreveu-se, no entanto, muito pouco sobre esses projectos; ainda em 1997, foi também lançado um programa de exposições itinerantes de artistas contemporâneos açorianos pela Casa da Cultura de Ponta Delgada; em1999 o Museu Carlos Machado associou-se à Bermuda National Gallery para dar forma a uma iniciativa notável - uma grande exposição colectiva, intitulada A Window on The Azores, que, infelizmente, não tivemos oportunidade de ver na Região (contudo o respectivo catálogo continua a constituir um documento importante na catalogação de artistas e-007- áreas de actividade); entre 2000 e 2003, três galerias de arte privadas mantiveram actividade regular em São Miguel:tem vindo progressivamente a solidificar-se um mercado de arte; a Galeria Fonseca Macedo, aqui sediada, apresenta anualmente o trabalho de artistas açorianos na Arte Lisboa e, este ano, apresentou-o também na Foro Sur, em Espanha;o Instituto Açoriano de Cultura organizou, nos últimos anos, em Angra do Heroísmo e Ponta Delgada, exposições com nomes significativos do panorama da Arte Contemporânea portuguesa; realizaram-se colóquios, cursos livres e workshops, nos quais as associações culturais independentes como a Academia das Artes, a Oficina de Angra e o CAV tiveram um papel preponderante; enfim, se estas são transformações que traduzem um novo contexto artístico, perceptível a uma escala regional, elas reflectem também, evidentemente, transformações económicas, sociais e políticas comuns ao mundo inteiro. Vivemos num mundo caracterizado por rápidas mudanças e não estamos isolados dele. Em 10 anos parece que, efectivamente, o panorama geral das Artes Plásticas na Região Açores se foi modificando gradualmente. Uma espécie de sede de dinamização invadiu esta área de actividade. Libertaram-se caminhos para a exploração de diferentes ideias, diferentes experiências, diferentes possibilidades. Os novos artistas encontram aqui, agora, um sector considerável do público que adere facilmente aos seus projectos.
Para alguém que tenha permanecido na Região ou em contacto frequente com ela ao longo da última década, o contexto encontra-se visivelmente alterado. Contudo, do meu ponto de vista, pouco se tem pensado com seriedade e muito menos escrito com seriedade, numa perspectiva de recenseamento crítico, sobre essa alteração, sobre os artistas que, crescentemente, a têm protagonizado e sobre os seus respectivos projectos artísticos.

 

UM PONTO DA SITUAÇÃO PERSPECTIVA O PASSADO E INDICIA O FUTURO

Evocações da Paisagem uma antologia de 10 anos de pintura nos Açores é uma exposição colectiva cuja concepção resulta de três verificações fundamentais:
A primeira é a de que vivemos, neste momento, um contexto alterado e que esta é uma oportunidade para rever o trabalho dos protagonistas desta alteração, fazendo um ponto da situação;
A segunda é a de que grande parte da produção significativa dos artistas açorianos em actividade dentro e fora da região tem sido realizada preferencialmente no médio pintura;
A terceira é a de que estes artistas evocam recorrentemente o tema da paisagem nas suas obras. No sentido do acima exposto, esta é uma exposição antológica de pintura, com a paisagem como tema, focalizada no trabalho realizado por artistas açorianos entre 1994 e o momento actual.
Tratando-se de uma exposição colectiva de dimensão considerável, com apresentação de propostas orientadas porpressupostos estéticos muito diferentes entre si, pretendeu-se que ela se afirmasse como um marco, como um ponto da situação, que perspectivasse o passado e indiciasse o futuro. A selecção dos artistas nela presentes reflecte esta pretensão: por um lado, artistas cujo trabalho teve visibilidade na Região ao longo da última década e, por outro lado, novos artistas, alguns desconhecidos na Região mas com um percurso firmado fora dela, a cuja qualidade de trabalho se pretende fazer justiça, abrindo caminho para a sua integração progressiva no circuito de exposições que temos vindo a construir. Para que o trabalho de todos pudesse ser melhor conhecido ou reconhecido, conforme o caso, optou–se por um formato de antologia organizada cronologicamente, mas constituída por mini-antologias de cada um. Assim, de cada participante é apresentado um máximo de 3 obras, realizadas entre 1994 e 2003. Com o convite, foi lançado um repto no sentido de ser também integrado um trabalho inédito executado no corrente ano, ao qual vários responderam afirmativamente. A selecção das obras foi orientada pelas linhas de fundo deste projecto mas a partir de propostas dos próprios autores, pondo assim em prática um modelo de organização regido pela salvaguarda do exercicio de capacidade decisória daqueles que acredito serem os reais protagonistas de uma iniciativa como esta, quer se trate de uma exposição individual ou colectiva - os artistas.

 

A PINTURA E A PAISAGEM

A pintura diria eu que era uma declaração do pensamento em obra vesivil e contemplativa, e segunda natureza. (…). É imaginação grande que nos põe ante os olhos aquilo que se cuidou tão secretamente da idea, mostrando o que se inda não viu, nem foi porventura, o qual é mais.

FRANCISCO DE HOLANDA, Da Pintura Antiga

Não obstante a advertência de Angel González Garcia nas notas à referida edição de De la Pintura Antigua, a definição de Francisco de Holanda, formulada no seu tratado de 1548 sobre a pintura, agrada-me sobremaneira. Num tempo em que somos constantemente assolados por uma manipulação do pensamento no sentido de nos fazer acreditar que a pintura, como arte, e tal como a arte em geral, só encontra pertinência enquanto declaração antropológica, social ou política, procurando a afectação a estas ciências no sentido de justificar a sua utilidade e consequente credibilidade num mundo ainda funcionalista, em que nada parece poder ser inútil, a exaltação da liberdade imaginativa e criativa, subjacente à afirmação de Holanda, revela-se tão apropriada e útil para nós, hoje, como para os seus contemporâneos. Pelo seu carácter não restritivo, ela assenta aqui como uma luva. Por outro lado, aquilo que distingue a pintura enquanto objecto, forma, passa pelas suas características como médio. Neste sentido, ela objectiva-se no revestimento de uma superfície, animando-a, sendo que esse valor, o de revestimento, não é subvertido por outros. No trabalho década artista que integra esta exposição ressalta a persistência duma relação muito própria e intima com o fazer da pintura, com a sua raiz como artefacto, através de um estilo individual muito definido que se traduz em linguagens múltiplas, únicas na sua reflexão sobre o próprio acto de fazer pintura no contexto actual, claramente marcado por uma corrente de pensamento que a tem arredado das grandes montras da Arte Contemporânea, procurando encontrar na sua prática indícios da expressão de uma condição -a de ser uma prática contaminada pela sombra de uma morte anunciada ao longo dos últimos 40 anos. Contudo, a nível histórico, esta circunstância apresenta-se como uma singularidade e, como tal, de desfecho imprevisível. De facto, ao contrário da Ciência e da Tecnologia, a arte não evolui, não progride, apenas se desenrola. Neste sentido, não parece claro que qualquer manifestação artística contemporânea, pelo simples facto de o ser, dentro ou fora do âmbito da pintura, diga mais sobre o pensamento e a experiência humana do que A última Ceia de Leonardo ou o o Juízo Final de Miguel Angelo. Poderá dizer mais sobre adversidade de meios científicos e tecnológicos que hoje temos ao nosso dispor. Mas, como a História da Arte nos tem ensinado, a arte, como tal, não se resume ao maior ou menor virtuosismo na apropriação de meios tecnológicos, novos ou velhos. A capacidade de um objecto resistir à inexorável passagem do tempo, por aquilo que nos diz de nós próprios, como seres humanos, parece ter mais a ver com a questão. A estratégia destes pintores não dá mostras de ser, portanto, inocente. Ironicamente, ela assume o carácter de uma declaração antropológica, social e política, mas, muito mais do que isso, o carácter de uma declaração estética. A pintura ainda continua a preservar a capacidade de nos fazer sonhar.

A pintura é a mais assombrosa das feiticeiras. Consegue persuadir-nos, através das mais transparentes falsidades, de que é a pura verdade.

JEAN ETIENNE LYOTARD, Traité des principles et règles de la peinture

A pintura é, talvez, a mais profundamente ilusória das artes. Neste sentido, uma das suas mais fiéis sucedâneas parece ser a imagem virtual. Desde sempre a pintura tem apresentado uma realidade virtual, tem jogado com a nossa predisposição para acreditarmos que existe um espaço que se desenvolve para lá do rectângulo plano do seu suporte. Ao longo de toda a sua história e, no Ocidente, sobretudo desde o início do séc. XVI - depois da emblemática Tempestade de Giorgione - a paisagem, como género, tem constituído um dos laboratórios mais eficazes de exploração do seu poder ilusório. Com efeito, a sucessão histórica dos modos de representação pictórica recria-se na nossa memória das obras dos grandes pintores paisagistas. De Giorgione a Lorrain, do Cemitério Judeu de Jacob Van Ruis dael às luminosas pinturas de Turner, da leveza e frescura das imagens criadas pelos pintores paisagistas chineses dos séculos XIII e XIV aos poderosos cenários de Caspar David Friedrich, de Constable a Monet e a Cézanne estendem-se e modificam-se possibilidades que refazem progressivamente as camadas da nossa memória da História da Arte e das imagens da paisagem no fazer da pintura. Nelas, o quadro assume-se como um todo indivisível em que a paisagem já não surge como fundo mas como verdadeiro tema da pintura.
Uma paisagem é uma extensão de terreno abarcada pelo campo de visão, constituindo um quadro panorâmico. Com o género pictórico, ela caracteriza-se pela representação de cenários naturais. A manipulação que dela fizeram os grandes mestres, recorrendo a artifícios que lhe dão forma enquanto objecto plástico e ilusório, tem privilegiado diferentes ideias que, por esse facto, a ela se encontram definitivamente associadas: a ideia de atmosfera e de luz, a ideia de encenação e de com-posição, a expressão da força e poder dos elementos naturais, a ideia de contemplação, a noção de espaço e de distância, a possibilidade de transmutação plástica do mundo visível. São estas as ideias que me interessa reter aqui. Elas continuaram a caracterizar, no desenrolar e desfecho da Arte Moderna, as imagens que associamos à pintura de paisagens e permanecem importantes, hoje, para nós pintores. Com efeito, as obras que constituem esta exposição são evocatórias da paisagem pela capacidade que têm de nos remeter para uma ou várias destas ideias. Não quer isto dizer que esta seja uma exposição de um grupo de pintores paisagistas. De facto, não o  é. É, sim, uma exposição de vinte e um artistas, cujo trabalho, em alguma fase do seu percurso, evocou ideias que facilmente  associamos a preocupações inerentes ao tratamento do tema da paisagem, tal como o conhecemos da História da Pintura: porventura o trazer na memória circunstâncias geográficas e geológicas muito marcantes e um espírito de viajante, mas, certamente, o trazer na memória a história das formas da História da Arte.
É este o sentido que dirige a breve abordagem que aqui é traçada das obras dos artistas que responderam afirmativamente ao convite que lhes foi formulado para integrarem este projecto.

 

EVOCAÇÕES DA PAISAGEM

José Nuno da Câmara Pereira introduz-nos na dimensão contemplativa da pintura. Contemplando o horizonte, saímos do nosso próprio corpo e entramos num drama psicológico que, em alguns casos, poderia parecer o de Rothko. Perspectivamos a paisagem à distância: é um confronto connosco próprios só possível de ser suscitado pelo domínio exemplar de técnicas visivelmente associadas a variadíssimos momentos da História da Pintura. Nas obras de Tomaz Vieira deparamo-nos com apuradíssimos exercícios de com-posição em que preocupações de natureza puramente pictória estão eternamente presentes. A associação com a ideia de paisagem estabelece-se pela relação dos elementos e do observador com o espaço, explorando os pontos de limite em que este os aglutina ou os liberta definitivamente. Por uma questão funcional, Ana Vieira traz a esta exposição fotografias de duas obras:  Ensaio para uma Paisagem e Constelação Peixes.  A sua integração neste contexto justifica-se pelas qualidades pictóricas de todo o trabalho da artista e dos projectos aqui documentados, em particular: tal como na pintura de paisagens, eles exploram as ideias de atmosfera e de luz - num caso através da criação de atmosferas, noutro porque se trata efectivamente de uma intervenção de fontes de luz num cenário natural. Com uma formação de escultor, José Maria França Machado tem vindo a surpreender-nos, nos últimos anos, com um domínio exímio da arte da pintura. Este é um trabalho visivelmente contemplativo e declaradamente mental. O que o pintor explora são os limites mínimos em que uma de o ser para ser outra e em que, nessa transformação, se abre um espaço infinito para lá do plano da tela. No universo irónico de Carlos Carreiro, a paisagem surge como mais uma componente de uma teia de relações de elementos, tão complexa como os absurdos da nossa sociedade. A arte de compor histórias, personagens, formas, cores e distribuições lumínicas atinge, no trabalho do pintor, um requinte de virtuosismo. As assemblagens de Maria Tomás remetem-nos para a ideia de encenação. Encenação é também o que fazemos quando, ironicamente, controlamos através de mecanismos de relógio, cronometrando-o, algo de tão imprevisível como o movimento de elementos naturais numa paisagem. Luís França apresenta-nos os seus Jardins de Pedra e um Mundo Esquecido de Deus. Aqui a paisagem assume uma dimensão mítica que a reporta a uma tradição clássica de pintura formalizada na exploração das ideias de encenação e de com-posição. No trabalho de Ana Paula Dourado a paisagem surge como pretexto para a exploração plástica/pictórica do mundo visível denunciando a fidelidade a uma tradição modernista da pintura, em que a tela é assumida como um plano bidimensional. O trabalho textural intenso faz os suportes de Miguel Rebelo adquirirem uma qualidade de pele. Neste processo de tirar e pôr tinta na superfície da tela, as formas fixam-se num plano intermédio entre o observador e o espaço distante. É a noção de espaço e de distância, paralelamente ao valor textural da superfície (que nos remete para a sua possível história geológica), que dá a estas obras do artista a qualidade de paisagens. Nas suas pinturas aqui presentes, Urbano explora plasticamente o mundo visível. A luminosidade é uma característica importante nestas obras mas é na aparente imediatez do processo, em que o acaso é vigiado com um olhar incisivo, que estas imagens encontram a sua frescura. O trabalho exaustivo da ondulação domar em No Princípio ou a monumentalidade do painel Memória dos Banhos das Alcaçarias traem qualquer tentação de acreditarmos que este processo é imediato. As paisagens de Filipe Franco exploram a noção de espaço e de distância. Tal como Richard Long, Filipe Franco desenvolve percursos pelo espaço. Mas, no caso deste artista, os percursos são nas ilhas e o seu objectivo é a recolha dos pigmentos/óxidos que cobrem o espaço que envolve os perfis abertos nas suas obras e que poderiam ser perfis traçados, à distância, no horizonte do mar das ilhas ou da imensa aridez da planície alentejana um caso paradigmático é Linha de Terra. Carlos Mota confronta-nos com a expressão da força e poder dos elementos naturais. A ambiência cromática e o tratamento da matéria situam estas pinturas numa tradição ibérica. Mas é o conhecimento da evolução incerta da deterioração da matéria pela exposição aos elementos que não nos deixa dúvidas relativamente a sua integração no género da paisagem. As paisagens de Nina Medeiros desmaterializam-se progressivamente em espaço e luz. É a fluidez da memória de viagens que dá corpo a esta pintura, impedindo a sua fixação numa única linguagem. As pinturas surgem como imagens de memórias à distância marcadas por experiências vividas. Paula Mota traz-nos encenações em que a ideia de paisagem é evocada por elementos que adquirem o carácter de indícios. A força das suas obras assenta na improbabilidade de fixação numa única unidade temporal. Elas parecem atravessar, nostalgicamente, vários tempos simultaneamente. Neste jogo decomposições improváveis são claramente subvertidos os nossos estereótipos do desejo. Com Victor Almeida a pintura retorna à sua dimensão contemplativa. Estas imagens fortemente atmosféricas que nos trazem à memória a pintura de Agnes Martin, apresentam um domínio técnico tão apurado que parecem gerar-se no próprio acto contemplativo, escondendo qualquer vestígio de intervenção física humana. Aqui, o confronto é com o espaço infinito abarcado pela profundidade do acto de ver, enquanto fenómeno mental. Luís Brilhante apresenta-nos possibilidades para um Bilhete de Identidade da pintura. Os títulos radicam as pinturas que se desenvolvem à superfície da tela, descrevendo o seu próprio processo generativo. Aqui a tela não é mais uma janela que se abre, mas sim uma janela que se fecha, justapondo, em áreas mínimas de composição complexa, todas as fases do processo é o próprio acto de fazer pintura que é olhado ao microscópio. A evocação da ideia de paisagem faz-se pelo conhecimento da História da Pintura uma História de luz rasgando uma atmosfera densa. Tendo assumido, ao longo de todo o seu percurso, o tema da paisagem como central à sua pesquisa, Carlota Monjardino apresenta-nos aqui, questionavelmente, as imagens com ele mais facilmente relacionáveis no contexto desta exposição. Estas pinturas resultam do estudo da própria representação da paisagem ao longo da História da Arte. Como tal, são imagens claramente contaminadas pelos seus momentos altos em que a representação da atmosfera e da luz se assume como uma preocupação sempre presente. No trabalho de Rui Melo o espaço abre-se para lá do primeiro plano do quadro. São-nos apresentados perfis no espaço. É na relação dos perfis dos elementos com o espaço envolvente que é sugerida a distância evocativa da paisagem. Nestas pinturas, o processo torna a ser relevante enquanto movimento que revela ou encobre as formas que se desenham num céu por vezes denso, por vezes longínquo. Catarina Castelo Branco subverte as ideias de escala e de paisagem. Estas não são representações de cenários naturais, são como que maquetes para a representação de uma paisagem artificial. Aqui os modelos não são os modelos para nós intemporais porque existiam antes de nós e continuarão a existir depois de nós, são sim modelos criados por nós a partir daqueles mesmos modelos. Os papéis, as relvas artificiais ou as imagens reflectidas revestem estas superfícies como revestem as paredes dos espaços que habitamos, iludindo-nos. As pinturas de André Almeida e Sousa têm a sua raiz no expressionismo enquanto vertente estética. Parecendo conterem si a imprevisibilidade dos movimentos da natureza, estas são imagens com um poder notável que o artista não hesitou em associar à temática da exposição. De facto, estas pinturas evocam paisagens por aquilo que estas têm demais paradoxal: o facto de revelarem simultaneamente a força e poder dos elementos naturais e a sua aparente delicada fragilidade. A capacidade de expressar este paradoxo só é possível com um conhecimento profundo da pintura. De João Decq, temos o livro Shadows of a Dream. Como o próprio nome indica, é um livro de sombras sobre o espaço branco do papel. Estas são as sombras de algo tão fluido como as imagens das paisagens que trazemos na nossa imaginação. De facto, no universo pictórico, as imagens da nossa imaginação podem ser perseguidas por sombras, tal como nós no nosso espaço.


A tarefa de escrever sobre pintura é ingrata ela está fatalmente condenada à expressão de uma subjetividade. Qualquer pintura tem a sua própria forma, que não é suscetível de ser expressa noutra linguagem. A única coisa que conseguimos verbalizar são indícios que procuramos racionalizar no discurso que construímos sobre arte. Mas esse discurso depende muito mais de nós do que do objecto que temos à nossa frente. O mais que podemos fazer é procurar linhas de chamada para ele de acordo com a lógica da nossa memória e do nosso pensamento. Do meu ponto de vista, este esforço é sempre meritório porque é sintoma e reflexo da atenção que depositamos sobre os objectos. As imagens que engrossam o catálogo de uma exposição, porque polimediadas, são uma pálida sombra das obras que puderam ser vistas nessa exposição. Mas um catálogo continua a ter a grande virtude de ser um documento de divulgação, que sintetiza um acontecimento e testemunha o interesse que uma determinada comunidade dedicou, num determinado momento, ao trabalho realizado pelos seus artistas.

SOBRE UMA EXPOSIÇÃO COLECTIVA DE ARTISTAS AÇORIANOS

Maria José Cavaco

in Catálogo da exposição "Evocações da Paisagem - Uma Antologia de 10 Anos de Pintura nos Açores"; Teatro Micaelense; Ponta Delgada, Outubro de 2004; Depósito Legal 217552/ 04; páginas 48,49,50,51; Maria José Cavaco, 2004